Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso
de escutatória.Todo mundo quer aprender a falar, ninguém quer aprender a
ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém
vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil.Diz Alberto Caeiro que “não é bastante
não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter
filosofia nenhuma”.
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as
coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
Parafraseio o Alberto Caeiro:”Não é bastante ter ouvidos para ouvir o
que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”.
Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem
logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a
gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de
descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a
gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil
de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos
estimulado pela revolução de 64.
Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os
participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio.(Os pianistas,
antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em
silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias
estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de
repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo
silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro
falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais.
São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.
Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira:
“Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você
falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando
você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”.
Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como
novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que
nem preciso pensar sobre o que você falou”. Em ambos os casos, estou
chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.
O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo
aquilo que você falou”. E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de
pensamentos.
E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas
que não ouvia. Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se
ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.
A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No
fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos
olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da
filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz
chorar.
Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a
importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam
num contraponto.
Rubem Alves
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