27.3.10

NO CASTELO DE ANSIÃES


Demais sei eu que o que passou passou,
a história não é uma serpente
que se refaz em cada primavera,
mas quando muito morde a própria cauda;

que os que aqui moraram já nem ossos são,
soprou sobre eles o tempo
e extinguiu o pouco fogo que eram;

que cessou todo o ruído, de festa ou de querela,
dissolvido no ácido dos dias;

que os lugares onde acaso podia ter ficado
impressa alguma pegada acidental,
algum risco na pedra com vocação de história,
estão ocultos por silvas e aveia brava.

Demais eu sei que os horizontes
que vamos recolhendo do alto das muralhas
com as afectuosas pinças da alma
– contrariamente aos que moraram e morreram –
permanecem os mesmos:
perpétuo desafio ao vento e ao olhar.

Então, se tudo isso sei:
carne friável, minerais perenes;

e se com tudo isso me conformo, como homem
sobre quem também soprará
o tempo e está disposto a perdoar;

porquê esta água insubmissa
que devagar me molha o reverso dos olhos?


A. M. Pires Cabral,
Novas Memórias de Ansiães

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