Imagem: Árvore da PAZ
Oficina das Artes
Neste
Natal, Deus venha amado, desarmado, disposto a conter as iras do velho
Javé e, surrupiado de fadigas, derrame diluvianamente sua misericórdia
sobre todos nós, praticantes de pecados inconclusos.
Venha
patinando pela Via Láctea, um sorriso cósmico estampado no rosto,
despido como o Menino na manjedoura, mãos livres de cajado e barba
feita, a pedir colo a Maria e afago a José. Traga com ele os eflúvios
das bodas de Caná e, a apetitar nossos olhos famintos, guisados de
ovelhas e cordeiros acebolados, sêmola com açafrão e ovos batidos com
mel e canela.
Repita
o milagre do vinho a embriagar-nos de mistério, porque núpcias com Deus
presente, assim de se deixar até fotografar, obnubila a razão e comove
o coração.
Venha
neste Natal o Deus jardineiro do Éden, babelicamente plural, disposto a
fazer de Ló uma estátua de açúcar. E com a harpa de Davi em mãos,
salmodie em nossas janelas as saudades da Babilônia e faça correr leite
e mel nos regatos de nosso afeto.
Neste Natal, não farei presépio para o Javé da vingança nem permitirei
que o peso de minhas culpas sirva de pedra angular aos alicerces do
inferno. Quero Deus porta-estandarte, Pelé divino driblando as
artimanhas do demo, acrobata do grande circo místico. Minha árvore não
será enfeitada com castigos e condenações eternas. Nela brilharão as
chamas ardentes da noite escura a ensolarar os recônditos do coração.
Venha
Deus a cavalo, a pé ou andando sobre os mares, mas venha prevenido,
arisco e trôpego e, sobretudo, desconfiado, à imagem e semelhança de
minha indigência. Enquanto todos comemoram em ceias pantagruélicas,
vomitando farturas, iremos os dois para um canto de esquina e, amigos,
dividiremos o pão de confidências inenarráveis.
Deus
será todo ouvido e eu, de meus pecados, todo olvido, pois não há graça
em falar de desgraça num raro momento de graça. Neste Natal, acolherei
Deus no meu quintal, lá onde cultivo hortaliças e legumes, e darei a
ele mudas de ora-pro-nóbis, coisa boa de se comer no ensopado de
frango. Mostrar-lhe-ei minha coleção de vitupérios e, se quiser,
cederei a minha rede para que possa descansar das desditas do mundo.
Se
Maria vier junto, vou presenteá-la com rendas e bordados trazidos do
sertão nordestino, porque isso de aparecer senhora de muitas devoções
exige muda freqüente de trajes e mantos, e muita beleza no trato. Que
venha Deus, mas venha amado, pois ando muito carente de dengos divinos.
Não pedirei a ele os cedros do Líbano nem o maná do deserto. Quero
apenas o pão ázimo, um copo de vinho e uma tijela de azeite de oliva
para abrilhantar os cabelos.
Cantarei
a ele os cantos de Sião e também um samba-canção. Tocarei pandeiro e
bandolim, porque sei das artes divinas: quem pontilha de dourado
reluzente o chão escuro do céu, e provoca o cintilar de tantas luzes,
faz mais que uma obra, promove um espetáculo. Resta-nos ter olhos para
apreciar.
Desejo
um Feliz Natal às bordadeiras de sonhos, aos homens que prenham a terra
com sementes de vida, às crianças de todas as idades desditosas de
maldades, e a todos que decifram nos sons da madrugada o augúrio de
promissoras auroras. Também aos inválidos de espírito apegados
ciosamente a seus objetos de culto, aos ensandecidos por seus mudos
solilóquios, aos enconchavados no solipsismo férreo que os impede de
reconhecer a vida como dádiva insossegável.
Feliz
Natal aos caçadores de borboletas azuis, artífices de rupestres
enigmas, febris conquistadores a cavalgar, solenes, nos campos férteis
de sedutoras esperanças. Feliz Natal às mulheres dotadas da arte de
esculpir a própria beleza e, cheias de encanto, sabem-se guardar no
silêncio e caminhar com os pés revestidos de delicadeza. E aos homens
tatuados pela voracidade inconsútil, a subjetividade densa a
derramar-lhes pela boca, o gesto aplicado e gentil, o olhar altivo
iluminado de modéstia.
Feliz
Natal aos romeiros da desgraça, peregrinos da indevoção cívica,
curvados montanha acima pelo peso incomensurável de seus egos
pedregosos. E aos êmulos descrentes de toda fé, fantasmas ao desabrigo
do medo, néscios militantes de causas perdidas, enclausurados no
labirinto de suas próprias artimanhas.
Feliz
Natal a quem voa sem asas, molda em argila insensatez e faz dela jarro
repleto de sabedoria, e aos que jamais vomitam impropérios porque sabem
que as palavras brotam da mesma fonte que abastece o coração de
ternura.
Feliz
Natal aos que sobrevoam abismos e plantam gerânios nos canteiros da
alma, vozes altissonantes em desertos da solidão, arautos angélicos
cavalgando motos no trânsito alucinado de nossas indomesticáveis
cobiças.
Feliz
Natal aos que se expõem aos relâmpagos da voracidade intelectual e aos
confeiteiros de montanhas, aos emperdigados senhores da
incondescendência e aos que tecem em letras suas distantes nostalgias.
Feliz
Natal a todos que, ao longo deste ano, dedicaram minutos de suas
preciosas existências a ler as palavras que, com amor e ardor, teço em
artigos e livros. O Menino Deus transborde em seus corações.
Frei Betto
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