“Todo tipo de coisas me desviam para longe de minha ciência à
qual eu acreditava estar dedicado firmemente. Através dela, queria
servir à humanidade, e agora, minha alma, tu me levas para essas coisas
novas. Sim, o mundo do meio, intransitável,
multiplamente cintilante. Esqueci que cheguei a um mundo novo, que antes
me era estranho. Não vejo caminho nem trilha. Aqui deverá tornar-se
verdade o que acreditei sobre a alma, que ela sabia melhor seu próprio
caminho e que nenhum desígnio lhe poderia prescrever um caminho melhor.
Sinto que é tirado um grande pedaço da ciência. Deve estar certo, por
amor à alma e por amor à sua vida. Dolorosa é apenas a idéia de que isto
só aconteceu para mim e que talvez ninguém consiga tirar alguma luz
daquilo que eu produzo. Mas minha alma exige esta produção. Devo poder
dizê-lo também só para mim sem esperança—por amor a Deus. Deveras um
caminho duro. Contudo, aqueles eremitas dos primeiros séculos cristãos—o
que faziam de diferente? E eram, por acaso,as piores e mais
imprestáveis pessoas que viviam naqueles tempos? De modo nenhum, pois
eram aqueles que tiravam a mais inexorável conseqüência da necessidade
psicológica de seu tempo. Eles deixavam mulher e filhos, riqueza, fama,
ciência—e se dirigiam ao deserto—por amor a Deus. Assim seja.” (Carl Gustav Jung, Livro Negro 3)
INTRODUÇÃO
Em O terceiro homem, de Carol Reed, o personagem de Orson
Welles diz ao herói (Joseph Cotten) que as intrigas turbulentas e
sanguinárias dos Bórgias e dos Médicis foram o pano-de-fundo da
Renascença, enquanto séculos de paz na Suíça criaram o quê? O
relógio-cuco.
Em 6 de junho de 1961, às vésperas dos seus 86 anos (nasceu em 26 de julho de 1875) morreu Carl Gustav Jung,
a maior refutação da pitoresca (embora divertida) hipótese
ético-civilizatória do “terceiro homem”. O mais eminente suíço
certamente não veio à Terra nem a passeio nem para espanar a poeira do
relógio-cuco: foi o pioneiro que aproximou o tratamento psicanalítico
das concepções orientais e abriu caminho no Ocidente para a proliferação
das terapias alternativas e práticas meditativas como a ioga.
Eu, que sou um freudiano convicto, nunca tive prevenção contra Jung
porque, depois de alguns livros que hoje sei serem duvidosos” (porque na
verdade não são de sua autoria), O homem e seus símbolos e Memórias, Sonhos, Reflexões[1],
ainda muito novo “descobri” um precioso volume que, se formos
rigorosos, também é uma contrafação, mas que conquista qualquer um para o
universo das idéias junguianas. Para mim, durante um bom tempo, Jung
foi O homem à descoberta de sua alma (com o subtítulo Estrutura e Funcionamento do Inconsciente).
Por que se pode dizer que é uma contrafação como os outros dois?
Trata-se de uma tradução portuguesa (da Tavares Martins, Porto, 1975)
de uma edição francesa organizada por Roland Cahen. Portanto, é café
coado duas vezes. Mesmo assim, desafio qualquer um a dizer que não se
trata de um livro fundamental para se descobrir por que Jung não se
limitou a aperfeiçoar o relógio-cuco e a “paz” suíça. A leitura de James
Hillman (que anda fora de moda ultimamente) também ajudou a estabelecer
uma certa cristalização das idéias de Jung (hoje sei que Hillman
representa apenas uma das inúmeras vertentes que foram adotadas a partir
dessas idéias, mas quem tem noção dessas coisas quando se é um leitor
onívoro de 20 anos?).
Também tive sorte no rol de obras de fato escritas por Jung. Comecei com o maravilhoso e apaixonante Tipos Psicológicos [2].
Eu não sou a pessoa mais sistemática do mundo e decerto o modo
junguiano de expor suas idéias é uma loucura, mas acho que o leitor
ganha muito com isso e o livro não é menos sólido por causa desse
enviesamento teórico: por exemplo, ao invés de definir de vez não só os
tipos psicológicos, como as funções a ele relacionadas (o pensar, o
sentir, o intuir e o perceber), ele analisa vários personagens
históricos e obras filosóficas e literárias (Jung seria um esplêndido
teórico literário). Perde-se a clareza didática, mas é um ganho ao fim e
ao cabo. E dali saiu um dos motes da minha vida:”…o que tende para fora tem de viver o seu mito, o que tende para dentro sonhará o seu meio ambiente, a chamada vida real”[3]
O LIVRO VERMELHO
Neste ano do cinqüentenário da morte de Jung, a editora Vozes lançou
nova edição da sua Obra Completa (18 volumes subdivididos em 35[4]) Mas o evento memorável, de fato, é a publicação de O Livro Vermelho, o inclassificável e original texto que surgiu do confronto-mergulho de Jung com seu próprio inconsciente[5].
Pena que a Vozes apostou mais no instinto de aquisição do que no
instinto de leitura. Teria sido mais sábio lançar todo o luxuoso aparato
fac-similar (maravilhoso), com o texto manuscrito, os desenhos, as
mandalas, no formato gigantesco que foi adotado, e o texto traduzido num
volume à parte, mais manipulável. Da maneira como ficou, torna-se quase
impossível ler O Livro Vermelho sem sérios
riscos musculares. Eu me sentia como que saído do Monte Sinai, um Moisés
carregando as (pesadíssimas) Tábuas da Lei. Tudo bem que é um mergulho
iniciático nos mais recônditos arquétipos, mas exagerou-se na dose!
Em 1913, aos 38 anos, apesar do prestígio e da estabilidade
financeira (casara-se com uma mulher rica), o grande pensador suíço
estava em crise: rompera com Freud, do qual era o principal discípulo, e
apesar de já ter publicado muito, ainda não dera corpo às concepções
psíquico-místicas (arquétipos, inconsciente coletivo, princípio de
individuação, animus e anima, o si-mesmo, a sombra, os tipos
psicológicos, a função transcendente, a sincronicidade), que serão o
fundamento da Psicologia Analítica junguiana e representarão na prática
clínica o mesmo que a Reforma significou para o cristianismo (todo mundo
conhece a cisão entre psicanálise freudiana e psicanálise junguiana)[6].
Jung sempre tivera obsessão por fenômenos ocultistas e por
manifestações do sobrenatural, e por essa época passou a ter uma série
de visões, sonhos acordados, que para ele, posteriormente, se revelariam
antevisões da Primeira Guerra. Isso significaria que havia uma conexão
entre os símbolos da psique individual e os da coletividade.
Desenvolveu, então, um método chamado imaginação ativa
(embora tenha chamado essa fase de sua vida de “doença criativa”), no
qual deixava “falar” a sua “alma”, o seu eu interior, aceitando todos os
seus conteúdos. Registrou o resultado em cadernos denominados Livros Negros e depois fez uma destilação, incluindo sua interpretação pessoal do que vivera, num caprichado volume, o Liber Novus,
cujo formato lembra muito os manuscritos medievais (na reprodução
fac-similar é uma festa para os olhos), que foi muito trabalhado durante
os anos seguintes, até que o interesse pela alquimia o levou para
outras direções. Esse livro pessoal se tornou mítico (tido como o
manancial de onde brotaram os principais conceitos junguianos), com a
alcunha de O Livro Vermelho, e só recentemente os herdeiros permitiram sua publicação.
Muitos consideram Jung um mistificador. Que imagem sai desse exercício de “imaginação ativa”? Jung produziu uma mistura de Assim falou Zaratustra, Imitação de Cristo (no final, porém, ele condena a imitação porque ela anula a idéia de renovação, e o texto é basicamente anti-cristão), A Divina Comédia e A Interpretação dos Sonhos e
ópera wagneriana, rompendo as fronteiras do místico, do literário, do
filosófico e do alegórico-simbólico, e também do bom e do mau gosto[7].
Nesse processo de introversão, deixando de lado os compromissos da
personalidade “exterior”, a alma de Jung vivencia um descenso (que
também é uma ascensão, já que nesse ponto da psique os contrários se
anulam), encontrando personagens enigmáticas, que representam partes
cindidas do Eu (o profeta Elias e Salomé, por exemplo, “Logos” e “Eros”
num mesmo contexto). O cadáver de um herói
(Siegfried) aparece boiando já que ele implica um modelo a ser imitado,
um ideal de perfeição e acabamento, e é preciso desatravancar o caminho
e abolir as divisões: “Devo dizer que o Deus não podia vir a
ser antes que o herói tivesse sido assassinado. O herói, como nós o
entendemos, tornou-se o inimigo de Deus, pois o herói é perfeição… não
haverá mais nenhum herói e ninguém que o possa imitar. .. O novo Deus ri
da imitação e do seguimento de exemplo. Ele força a pessoa através dele
mesmo…O heróico em ti é que és comandado pelo pensamento de que isso
ou aquilo seja o bem, que esta ou aquela obra seja indispensável, que
esta ou aquela coisa seja rejeitável, que este ou aquele objetivo deve
ser alcançado pelo trabalho ambicionado lá adiante, que este ou aquele
prazer deva ser reprimido por todos os meios e inexoravelmente. Com
isso pecas contra o não-poder…”
E assim vai nascendo a “função transcendente”, aquela que permite a
colaboração dos conteúdos conscientes e inconscientes. E também vai se
aclarando o “processo de individuação”, tão caro à psicologia junguiana.
Devo dizer, contudo, que os embates da alma de Jung e o imaginário que
daí emerge em O Livro Vermelho fornecem munição à visão crítica de Richard Noll, cujo O Culto de Jung é uma abordagem negativa do mestre suíço como liderança carismática e representante da mentalidade völkisch (culto aos antepassados teutônicos, insistência na supremacia germânica, fornecida pelas noções de geografia e raça)[8], que foi um componente psíquico que estimulou o desenvolvimento de uma mentalidade nazista.
Ao contrário da interpretação dos sonhos freudiana, onde eles—por
meio dos deslocamentos e disfarces—revelam de forma latente o trabalho
do inconsciente que seria preciso tornar manifesto e que remontaria a
causas pretéritas, escondidas na infância individual, a escavação do
onírico feita por Jung se volta mais para a revelação do futuro que se
oculta nas dobras do imaginário. Não é á toa que anunciou o trabalho de
toda uma vida.
Contudo, para encerrar esse meu breve passeio pelos bosques junguianos, escolho citar—até para provocar o escândalo do eu freudiano—uma reveladora passagem de O homem à descoberta de sua alma:
“Seria lastimável considerar como ilusório esse sistema
imenso de experiências da psique inconsciente. O nosso corpo visível e
tangível é também um sistema de experiências inteiramente comparável,
que encerra ainda os traços dos desenvolvimentos das primeiras idades e
forma, incontestavelmente, um conjunto sujeito a um fim: a vida, que, de
outro modo, seria impossível.
A ninguém ocorreria negar o grande valor da anatomia
comparada ou da fisiologia. O estudo do inconsciente coletivo e a sua
utilização como fonte de conhecimento não pode ser visto como ilusão.
Sob um ponto de vista superficial, a alma parece-nos ser essencialmente o
reflexo de processos exteriores, que dela seriam não somente as causas
ocasionais, como sua origem primária. Do mesmo modo, o inconsciente, de
início, não parece explicável senão do exterior, a partir do consciente.
Sabemos que Freud, na sua psicologia, fez essa tentativa. Mas ela só
poderia ter triunfado se o inconsciente fosse, de fato, um produto da
existência individual e do consciente. Todavia, o inconsciente
preexiste sempre, sendo a disposição funcional herdada de idade em
idade. A consciência é um rebento tardio da alma inconsciente… A velha
psicologia, presciente do inestimável tesouro de experiências obscuras
ocultas sob o limiar da consciência individual e efêmera, não considerou
a alma do indivíduo senão na dependência de um sistema cósmico
espiritual. Para ela, não era apenas uma hipótese, mas uma evidência
manifesta que esse sistema representava uma entidade dotada de vontade e
de consciência, até mesmo um ser, um ser a que chamou Deus e que se
tornou a quintessência de toda a realidade. Deus era o ser mais real, a prima causa,
graças à qual somente a alma podia ser explicada. Essa hipótese tem a
sua razão de ser psicológica: qualificar de divino, em relação ao homem,
um ser imortal, dotado de uma experiência eterna, não é totalmente
injustificado. Assim se esboça a problemática de uma psicologia fundada
não sobre a ordem física, como princípio explicativo, mas sobre um
sistema espiritual, cujo primus movens não é nem ma matéria e as suas qualidades, nem um estado energético, mas Deus…
…O estudo desse dilema e o desejo de o resolver
conduziram-me à seguinte conclusão: o conflito entre a natureza e o
espírito nada mais é do que a tradução da essência paradoxal da alma, a
qual possui um aspecto físico e um aspecto espiritual que não parecem
contradizer-se porque, em última análise, não lhe apreendemos a
essência. Sempre que o entendimento humano quer apreender qualquer coisa
que no fim das contas não compreende e não pode compreender, para
captar alguns aspectos, submete-a a uma contradição e cinde-a em suas
aparências opostas.
O conflito entre o aspecto físico e o aspecto espiritual
apenas prova que o psíquico é, na essência, qualquer coisa de
inapreensível, e essa é a única experiência imediata. Tudo aquilo de
faço experiência é psíquico, até a dor física, de que apenas experimento
o reflexo psíquico. Todas as percepções dos meus sentidos, que me
impõem um mundo de objetos espaciais e impenetráveis, são imagens
psíquicas que representam a minha única experiência imediata, sendo
essas imagens os únicos dados imediatos da minha consciência. A minha
psique transforma e falsifica a realidade em proporções tais que é
preciso recorrer a expedientes para verificar o que as coisas são fora
de mim… Achamo-nos de tal modo envolvidos nas nossas imagens psíquicas
que não podemos penetrar a natureza das coisas exteriores. Tudo aquilo
de que adquirimos conhecimento é feito de materiais psíquicos. A psique é
a entidade real no supremo grau…”
[1] O homem e seus símbolos
apresenta uma série de ensaios e apenas o introdutório é de autoria de
Jung, que o escreveu pouco antes de morrer; é hoje indiscutível que Jung
está por trás do projeto mi(s)tificatório de Memórias, Sonhos, Reflexões, porém o texto final, afora a colher que editores e herdeiros meteram, é de responsabilidade da discípula Aniela Jaffé.
Ainda assim, os dois livros provavelmente vendem mais do que a obra junguiana propriamente dita.
Estabelecido esse ponto, não dá para descartar nenhum dos dois. O ensaio de Jung em O homem e seus símbolos é uma ótima introdução às suas idéias, e quem negará o fascínio de Memórias, Sonhos, Reflexões, apesar dos seus aspectos irritantes e da sua dubiedade autoral?
![o_homem_e_seus_s_mbolos](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_ui6Evc5XvwGukw_jHorkJz1PDwD9cviBaE41IBs-IPHK6LM_Kp9d_WEI7iM1vMv3n95t6QXODVg4uvRWYi7tja9ci_xTLOvMDPjJ8YDUNMfTd4q5tXE93bjuRuQRoCJslv9tucEUeaobY=s0-d)
![memórias, sonhos, reflexões](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_s7Jzht4v8-hTaMiphgjnqjy-awWE3GKxyS2Zsnv64oGhSzLLDlsK2USpv4yWIYj_c-5_hbYSimzmbLbdAmmCJYdks7Dg56l-hs6oSdaf_k2a-Lb8Wbxo3sgSam9bgsB_4os4T551x0cOBYd0VABO0q=s0-d)
Ainda assim, os dois livros provavelmente vendem mais do que a obra junguiana propriamente dita.
Estabelecido esse ponto, não dá para descartar nenhum dos dois. O ensaio de Jung em O homem e seus símbolos é uma ótima introdução às suas idéias, e quem negará o fascínio de Memórias, Sonhos, Reflexões, apesar dos seus aspectos irritantes e da sua dubiedade autoral?
[2] Não na tradução publicada nas Obras Completas:
eu trabalhei durante um ano, de 1984 a 1985, numa contabilidade, e ali,
por sorte, havia uma biblioteca excelente, onde encontrei a tradução de
Álvaro Cabral, editada pela Zahar. Li há pouco tempo a tradução das Obras Completas
e a de Cabral ganha longe em expressividade e ao mesmo tempo clareza,
apesar dos inúmeros erros de impressão. Mas isso é assunto para outro
post.
[3] O leitor encontrará essa citação na pág. 207 da edição da Zahar, de 1974, e está no extraordinário capítulo em que ele analisa o Prometeu e Epimeteu do nobelizado Carl Spitteler, comparando-o com os fragmentos do Prometeu goethiano. Antes, ele estudara as Cartas de Schiller onde este propugnava uma educação estética do homem, e também A Origem da Tragédia
e os tipos apolíneo e dionisíaco de Nietzsche, sem contar as inúmeras
referências às doutrinas e textos sagrados hindus e chineses.
[4] Na verdade, o correto seria Obras Reunidas, pois apesar de sua pretensão elas estão longe de ser “completas”.
[5]
A edição original é de 2009. Os textos do volume foram traduzidos por
Edgar Orth, Gentil A. Titton e Gustavo Barcellos. A revisão da tradução é
de Walter Boechat.
O editor de O livro vermelho, Sonu Shamdasani, escreveu uma ótima, objetiva e nada partidária introdução.
O preço é salgado: o valor pode chegar a mais de quinhentos reais, é preciso pesquisar em vários lugares, pois há muitas ofertas.
O editor de O livro vermelho, Sonu Shamdasani, escreveu uma ótima, objetiva e nada partidária introdução.
O preço é salgado: o valor pode chegar a mais de quinhentos reais, é preciso pesquisar em vários lugares, pois há muitas ofertas.
[6]
Meu texto simplifica muito as coisas, evidentemente: esses conceitos
tenham sido elaborados em épocas diversas e sofrido ajustes. Além desse
fato cronológico básico, vertentes diversas privilegiaram certos
aspectos e deixaram à parte outros. E para ser franco eu nem sei como
seria a prática clínica de um analista ou psiquiatra junguiano, uma vez
que jamais escolheria essa linha para ser analisado ou diagnosticado. Se
fizesse análise, teria o maior cuidado de escolher um analista da linha
freudiana. O que não invalida Jung como pensador da cultura.
Para entender as vertentes pós-junguianas, uma boa opção, apesar de já meio antiga (é de 1985, e a edição brasileira é de 1989) é Jung e os pós-junguianos, de Andrew Samuels. Foi nele que descobri que James Hillman era representante da “escola arquetípica”.
![junguiana](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_t1gQrlX2Xkk1pl75G8xNLr4kEkNG72cQB9mHN2KduusHMDpJx-IZDyWHrAbfCWhpFhSOOb_gdbKvL3jWm74loog_ccukM6WpGHFzZFU5_4msKp_M2nHwmVrRTL=s0-d)
Para entender as vertentes pós-junguianas, uma boa opção, apesar de já meio antiga (é de 1985, e a edição brasileira é de 1989) é Jung e os pós-junguianos, de Andrew Samuels. Foi nele que descobri que James Hillman era representante da “escola arquetípica”.
[7]
Há até elementos metalingüísticos auto-críticos e bem-humorados. Jung,
numa dessas visões, chega a um castelo onde há um velho com seus livros,
que não lhe dá pelota. Passando a noite ali, ele sofre de insônia.
Veja-se o divertido relato:
“Parece que não havia mais ninguém casa, a não ser o servo, que morava acolá na torre. Um modo de vida ideal, mas solitário o desse velho com seus livros, pensei eu. E nisso se demoraram por longo tempo meus pensamentos, até que percebi que um outro pensamento não me abandonava, isto é, que o velho mantinha escondida aqui sua bela filha—idéia romântica absurda—um tema sem graça e já explorado—mas o romântico está em todas as juntas de cada pessoa. Uma idéia genuinamente romântica: um castelo na floresta—solitário, crepuscular—um velho mumificado em seus livros, que guarda um tesouro valioso e o esconde ciosamente de todo o mundo—que idéias ridículas me chegam! É inferno ou purgatório que preciso conceber em minha viagem errada à semelhança dos sonhos infantis? Mas sinto-me incapaz de elevar meus pensamentos a algo mais forte ou mais bonito. Devo consentir nesses pensamentos. O que adiantaria repeli-los? Eles voltam… Como será que ela se parece, essa heroína aborrecida? Certamente loura, pálida—olhos azuis—ansiosamente esperando de cada caminhante extraviado o salvador de sua prisão paterna. Ah, eu conheço este absurdo trivial—prefiro dormir—por que, diabos, deixo atormentar-me com essas fantasias ocas?
O sono não quer nada. Viro-de de um lado para outro, o sono não vem, devo eu ter em mim mesmo afinal esta alma não resgatada? Será que é ela que não me deixa dormir? Terei eu uma alma tão romântica? Só faltava isto—seria dolorosamente ridículo… É simplesmente macabro para onde a insônia pode levar uma pessoa, inclusive para as teorias mais disparatadas e mais supersticiosas. Parece fazer frio, eu estou com frio, talvez não durma por causa disso, aqui é realmente sinistro. Deus sabe o que acontece aqui, não escutei passos há pouco? … A porta está se abrindo? Meu Deus, alguém está aí? Estou vendo bem? Uma moça esguia, pálida como a morte, está à porta? Céus, o que é isto? Ela se aproxima!
Chegaste finalmente, perguntou baixinho. Impossível, é um engano pavoroso, o romance quer tornar-se real, quer transformar-se em história estúpida de fantasmas? A que disparate estou condenado? È minha alma que alberga tais glórias românticas? Isto também deve acontecer comigo? Estou realmente no inferno—o pior despertar do leitor de romances de biblioteca pública! Desprezei as pessoas de minha época e seu gosto, tanto assim que devo viver e escrever no inferno os romances sobre os quais cuspi há muito tempo? Será que a metade inferior do gosto médio da humanidade também tem direito à santidade e inviolabilidade, de modo que não possamos dizer nenhuma palavra desairosa sobre isso sem termos de pagar o pecado no inferno?
Ela fala: Ah, tu também pensas o trivial de mim? Também tu te deixas seduzir pela malfadada ilusão de que eu pertenço a um romance? Também tu, de quem esperava que tivesse abandonado as aparências e se esforçasse para atingir a essência das coisas?
Eu: Perdão, mas existes realmente? É uma semelhança por demais infeliz com aquelas cenas de romances, desgastadas até a parvoíce, que eu pudesse aceitar que não fosses apenas um produto de meu cérebro insone. Minha dúvida não está realmente justificada, quando uma situação coincide de tal forma com o tipo de romance sentimental?
Ela: Infeliz, como podes duvidar da minha realidade? (…)
Eu: Mas, dize-me, por amor de Deus, tu és real? Devo levar-te a sério como realidade?
Ela chorava e nada respondia.
Eu: Quem és então?
Ela: Eu sou a filha do velho. Ele me mantém aqui numa prisão insuportável, não por ciúme ou ódio, pois sou sua única filha e o retrato vivo de minha mãe, falecida muito jovem.
Recorri à minha razão: isto não é uma estupidez infernal? Palavra por palavra, o romance de uma biblioteca pública! Ó Deuses, para onde me levastes? É para rir, para chorar, é duro ser um belo sofredor, um destroçado tragicamente, mas tornar-se um macaco, vós belos e grandes? O banal e eternamente ridículo, o indizivelmente gasto e usado nunca vos foi depositado nas mãos…
Ela continuava sentada ali chorando—e se fosse real?… Se for uma moça decente, o que não lhe deve ter custado entrar no quarto de dormir de um homem desconhecido!”
(os grifos na cena são todos meus).
![suastica](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_s9eUjrgPULMztXe51HRqED-vS78BYQLZltIxJqKfRTrFq0flZNMa2PA7YKgRzMFna1AHBNObQFmjheh9g6mB4kROQ9OWazmsZTGBRu1gleQlSg_9u9GYf2olE=s0-d)
![culto de jung](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_vazJSyPAlNYXyJYu6B-HimNFhR7RrRTp7zSc3C-fAMEIc5lFRL1YZwS14QBSv7oz3Be4n4rUXDl0sgWVhBy14MokIqG1lp7idl9PM_J3ZImX7HCJqfPRQSkrBt_DASkw=s0-d)
“Parece que não havia mais ninguém casa, a não ser o servo, que morava acolá na torre. Um modo de vida ideal, mas solitário o desse velho com seus livros, pensei eu. E nisso se demoraram por longo tempo meus pensamentos, até que percebi que um outro pensamento não me abandonava, isto é, que o velho mantinha escondida aqui sua bela filha—idéia romântica absurda—um tema sem graça e já explorado—mas o romântico está em todas as juntas de cada pessoa. Uma idéia genuinamente romântica: um castelo na floresta—solitário, crepuscular—um velho mumificado em seus livros, que guarda um tesouro valioso e o esconde ciosamente de todo o mundo—que idéias ridículas me chegam! É inferno ou purgatório que preciso conceber em minha viagem errada à semelhança dos sonhos infantis? Mas sinto-me incapaz de elevar meus pensamentos a algo mais forte ou mais bonito. Devo consentir nesses pensamentos. O que adiantaria repeli-los? Eles voltam… Como será que ela se parece, essa heroína aborrecida? Certamente loura, pálida—olhos azuis—ansiosamente esperando de cada caminhante extraviado o salvador de sua prisão paterna. Ah, eu conheço este absurdo trivial—prefiro dormir—por que, diabos, deixo atormentar-me com essas fantasias ocas?
O sono não quer nada. Viro-de de um lado para outro, o sono não vem, devo eu ter em mim mesmo afinal esta alma não resgatada? Será que é ela que não me deixa dormir? Terei eu uma alma tão romântica? Só faltava isto—seria dolorosamente ridículo… É simplesmente macabro para onde a insônia pode levar uma pessoa, inclusive para as teorias mais disparatadas e mais supersticiosas. Parece fazer frio, eu estou com frio, talvez não durma por causa disso, aqui é realmente sinistro. Deus sabe o que acontece aqui, não escutei passos há pouco? … A porta está se abrindo? Meu Deus, alguém está aí? Estou vendo bem? Uma moça esguia, pálida como a morte, está à porta? Céus, o que é isto? Ela se aproxima!
Chegaste finalmente, perguntou baixinho. Impossível, é um engano pavoroso, o romance quer tornar-se real, quer transformar-se em história estúpida de fantasmas? A que disparate estou condenado? È minha alma que alberga tais glórias românticas? Isto também deve acontecer comigo? Estou realmente no inferno—o pior despertar do leitor de romances de biblioteca pública! Desprezei as pessoas de minha época e seu gosto, tanto assim que devo viver e escrever no inferno os romances sobre os quais cuspi há muito tempo? Será que a metade inferior do gosto médio da humanidade também tem direito à santidade e inviolabilidade, de modo que não possamos dizer nenhuma palavra desairosa sobre isso sem termos de pagar o pecado no inferno?
Ela fala: Ah, tu também pensas o trivial de mim? Também tu te deixas seduzir pela malfadada ilusão de que eu pertenço a um romance? Também tu, de quem esperava que tivesse abandonado as aparências e se esforçasse para atingir a essência das coisas?
Eu: Perdão, mas existes realmente? É uma semelhança por demais infeliz com aquelas cenas de romances, desgastadas até a parvoíce, que eu pudesse aceitar que não fosses apenas um produto de meu cérebro insone. Minha dúvida não está realmente justificada, quando uma situação coincide de tal forma com o tipo de romance sentimental?
Ela: Infeliz, como podes duvidar da minha realidade? (…)
Eu: Mas, dize-me, por amor de Deus, tu és real? Devo levar-te a sério como realidade?
Ela chorava e nada respondia.
Eu: Quem és então?
Ela: Eu sou a filha do velho. Ele me mantém aqui numa prisão insuportável, não por ciúme ou ódio, pois sou sua única filha e o retrato vivo de minha mãe, falecida muito jovem.
Recorri à minha razão: isto não é uma estupidez infernal? Palavra por palavra, o romance de uma biblioteca pública! Ó Deuses, para onde me levastes? É para rir, para chorar, é duro ser um belo sofredor, um destroçado tragicamente, mas tornar-se um macaco, vós belos e grandes? O banal e eternamente ridículo, o indizivelmente gasto e usado nunca vos foi depositado nas mãos…
Ela continuava sentada ali chorando—e se fosse real?… Se for uma moça decente, o que não lhe deve ter custado entrar no quarto de dormir de um homem desconhecido!”
(os grifos na cena são todos meus).
[8]
Mais uma vez, sou obrigado a simplificar em demasia, no caso, o rico,
complexo e ambíguo panorama traçado por Noll em seu livro. Mas
acompanhemos alguns trechos: “Muitos grupos völkisch
transformaram as noções de pureza racial em ideais quase de ciência e
religião… O historiador Ekkehard Hieronimus fez um levantamento do
fascínio pela religião germânica… No século XIX, grupos neopagãos
dedicados a reviver os mistérios germânicos assumiram a pesquisa sobre o
passado alemão. E, de fato, o retorno à Idade de Ouro e à vida
´natural´ dos teutos foi freqüentemente invocado por grupos alemães em
busca de renovação ou renascimento… À secularização de conceitos
burgueses/protestantes como a família, a comunidade e a idéia de morte
sacrificial, correspondia nesses grupos um patriotismo cada vez maior,
que traçava paralelos entre o martírio de Cristo e o martírio de heróis
nacionais como Siegfried… A morte sacrificial e a identificação do deus
cristão com o deus teutônico eram temas que em 1912 reapareceriam com
destaque numa obra extraordinária, Metamorfoses e símbolos da libido, de Jung” [esse
é provavelmente o primeiro livro importante do ex-discípulo de Freud, e
atualmente é editado com o titulo da sua ampla revisão posterior, Símbolos da Transformação, volume 5 das Obras Completas). Noll fala de um importante editor de obras de tendência völkisch, Eugen Diederichs: várias de suas edições foram encontradas na biblioteca de Jung, o qual “citava essas obras, sobretudo em Metamorfoses e símbolos da libido, um livro que repudiava a ortodoxia cristã e promovia o misticismo völkisch do culto ao sol. Na década de 1890, muitos indivíduos völkisch
acreditavam que o sol era o único Deus dos verdadeiros alemães… A
suástica, um antigo símbolo indiano para a contínua regeneração da vida
foi colocada num círculo que representava o sol… A suástica nesse disco
branco simbolizava as energias ressurgentes da vida… Graças à
influência de figuras destacas como Diederichs e os autores que
publicava, o interesse no simbolismo das mandalas dos antigos arianos
começou a se espalhar pela Europa germânica. Jung, por exemplo, traçou
sua primeira mandala em 1916 e mais tarde comentou sua importância como
símbolo do ´self´ou do ´deus-imagem interior´ (todo esse imaginário pode ser encontrado nas páginas de O livro vermelho e a edição reproduz as mandalas criadas por Jung).
O livro de Noll (que é de 1994) foi traduzido no Brasil (por Mário Vilela) e lançado pela Ática em 1996.
Autoria : Alfredo Montemontedeleituras.blogspot.com
Um comentário:
Gostaria que você indicasse que esse texto sobre Jung é de minha autoria, Alfredo Monte. É o mínimo, não
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